26 de julho de 2014

Avó Minda

Hoje é dia dos avós e apesar de saber que os meus filhos têm os melhores avós que podiam ter, hoje tenho de falar  da minha avó Minda, que me criou e ensinou tanta coisa.
Foi a minha ama em Angola, durante o dia, todos os dias, enquanto a minha mãe trabalhava. Vivia na Vila Alice, numa casa de dois andares, com quintal, casa de amor, onde criou cinco dos dez netos. Já em Portugal, teve ainda paciência e amor para criar os restantes e alguns dos bisnetos, entretanto nascidos.
Ficou viúva com 47 anos, com quatro filhos menores e dois enteados a cargo e foi desde sempre uma lutadora. Verdadeira mãe coragem que tudo e todos enfrentou para poder sobreviver com um pouco de dignidade quando toda a dita alta sociedade lhe virou as costas.
Como avó foi tudo, foi mãe, amiga, professora, companheira de risos e passeios.
Ensinou-nos as regras bases de higiene e educação e, depois disso, tudo o resto.
Foi com ela que aprendi a cozinhar e a comer rancho e cozido pobre e tenho procurado aquela bôla que só ela sabia fazer e que apesar de ter tentado ensinar a tanta gente, ninguém consegue fazer igual. Não sabe ao mesmo, não é a mesma coisa.
Foi ela que me ensinou a tricotar, a bordar, a coser. Também pintava mas para isso eu não tinha mesmo jeitinho nenhum.
Dela herdei a forma e postura de corpo e com ela aprendi a gostar de medicina e armávamo-nos muitas vezes em especialistas quando nada sabíamos na verdade. Deu-me centenas de injecções e foi minha enfermeira em muitas ocasiões. Sempre que o tema era esse, ela recordava as vezes que me teve no colo em situações complicadas quando era bebé - "estiveste muitas vezes morta nos meus braços". Reza a história que de cada vez que me nascia um dente, tinha uma convulsão; de cada vez que tinha febre, passava os 40º e tinha uma convulsão. Parece que não fui fácil de aturar.
Foi com ela que aprendi a gostar de museus, que aprendi a gostar de livros e a viajar na leitura, foi com ela que aprendi a descobrir o mundo, as pessoas, a  politica e o futebol. Benfiquista ferrenha, discutíamos muitas vezes as nossas rivalidades clubistas, sem nunca discutirmos na verdade, mas em muitas outras coisas tínhamos formas semelhantes de pensar e sentir.
Dela herdei o ar zangado e altivo, a rudeza no trato e a aparente ausência de afectos.
Vanguardista, nunca achou escandaloso nada que acontecesse ao seu redor quer com filhos quer com netos. Divórcios, separações, mães solteiras, mães adolescentes, casamentos e recasamentos, filhos de pais diferentes, tudo ela aceitou, sem qualquer tipo de recriminação ou pudor.
Gostava de viajar, de falar com toda a gente de ouvir concertos e ver espectáculos de teatro, cinema e dança. Quis o destino que acabasse a vida quase cega e privada de todos esses prazeres mas nunca a vi sem aquela energia que a caracterizava e sem a vontade de tagarelar tão singular.
Fui a segunda neta e tive o privilégio de conviver com ela mais de quatro décadas e tenho saudades, muitas saudades de a ter por perto, de sentir aquele abraço que só ela sabia dar quando dele precisávamos. Não era de grandes manifestações de afecto, nunca foi aquela avó beijoqueira e melosa, mas nunca nos faltou quando dela precisávamos. Manteve-se firme, corajosa e lutadora sempre que a vida a traía e ensinou-me essa dureza e firmeza de sentimentos. Ás vezes, quando não consigo agir como era suposto, sinto que a estou a trair mas lá no fundo sei que fui boa aluna e que aprendi o básico que ela me quis transmitir.
Tinha histórias lindas para contar, da infância, única rapariga branca a viver no mato de Angola, mãe de uma irmã com meses, quando ficaram órfãs. Viveu uma vida cheia e intensa, dura, mas acredito que plena e feliz com a família que construiu.
Lembro-me dela em muitas coisas, em pequenas coisas, em muitos lugares.
Lembro-me das rosas em vasos pequeninos, da cama improvisada no sofá, nos passeios a pé, daquele anel, do xaile preto, do calor do seu olhar, do conforto das palavras, do toque da mão dela na minha, dos ensinamentos, das palavras quase sempre sábias, da ternura e amor, das pequeninas prendas que fez questão de me dar, da fragilidade final, mas daquilo que me lembro essencialmente é das nossas conversas intermináveis naquelas noites em que jantávamos as duas depois de mais uma aula de piano.
Por fim cuidei dela em duas ou três ocasiões, sempre por doença, numa troca mais que justa. Estive com ela quando partiu a perna, em massagens e banhos diários, depois quando partiu o pulso, fui com ela a algumas consultas e por último fui eu que a internei quando a pneumonia já não a deixava respirar.
Sinto a presença dela na minha vida muitas vezes  e sinto-a no meu coração sempre e só peço que se um dia  tiver netos possa ser para eles um pouco aquilo que a AVO MINDA foi para mim.

2 comentários:

  1. Bela homenagem! Só podia vir de uma alma grandiosamente generosa e sensível... Um abraço, Samy!

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    1. Simples lembranças, escritas com o coração, mas nada que se compare às belas palavras com que nos brindas noutras partilhas. Admiro e invejo o teu dom...tivesse eu um quarto do teu talento e sairia com certeza algo melhor. Beijinhos saudosos

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