23 de julho de 2014

A viagem para Portugal

Há alguns dias falei aqui sobre as últimas fotografias que tirei quando os meus pais decidiram mandar-me para Portugal, depois da revolução de 1974. Recordei esses momentos e deixei aqui o testemunho dessas memórias. Hoje vou mais além e vou recordar a viagem de avião.
Vim apenas com o meu irmão, quatro anos mais velhos, entregue às hospedeiras (antigamente chamavam-se hospedeiras às actuais assistentes de bordo), que deveriam zelar pelo nosso bem estar durante a viagem e entregar-nos, qual mercadoria, aos nossos avós paternos que, esperávamos, estariam à nossa espera no aeroporto. Não tenho grandes memórias da despedida dos meus pais e restante família, mas recordo muito bem tudo o resto.
A viagem foi horrível, num avião cheio de mulheres, crianças e especialmente bebés, muitos bebés, deitados numas camas suspensas do tecto do aparelho. Se pensarem nas redes de descanso brasileiras que se colocam no jardim, presas entre duas árvores, ficam com uma ideia aproximada das camas de bebés de que vos falo. Os miúdos, insuportáveis, choraram a viagem toda. Acredito que não tenha sido bem assim e seja apenas a minha memória a exagerar, mas a verdade é que é disso que me lembro, do choro contínuo e da tristeza no rosto das mães. De alguma forma, sentia-se o peso da viagem e o seu significado: o sair de um país onde se nasceu e cresceu e que se tinha de abandonar à pressa e se intuía, lá no fundo do coração, que seria para muitos uma viagem sem regresso. Ouvia-se o choro dos bebés e crianças e viam-se lágrimas silenciosas nos rostos das mães e dos parentes em terra. As hospedeiras andavam numa roda viva, tentando atender todos os pedidos e de vez em quando uma vinha ver como estávamos. O meu irmão, como mais velho, assumiu o controlo e a responsabilidade pelo meu bem estar e segurança da viagem e tentava dar-me a mão, de vez em quando, e fazer-me uma festa que me confortasse mas, na realidade, o conforto era muito pouco. Tinha deixado os meus pais, pilares de vida, para trás, num país em guerra. Bem sei que me prometeram ir ter connosco assim que lhes fosse possível e que escreveriam todos os dias. Acreditei em ambas as promessas feitas mas o nó na garganta e o aperto no peito eram uma constante.
Chegados a Lisboa, seríamos entregues aos avós paternos dos quais nada recordava. Tinha convivido com eles em pequena e tinha-os visitado uma vez, quando viemos de graciosa, tinha eu quatro anos. Como percebem, as minhas lembranças eram nulas. O Luiz, o tal irmão com mais quatro anos, recordava-se deles. Tinha vivido com eles, quando fez cá a 1ª classe e consolava-me dizendo que não me preocupasse que ia correr tudo bem e que eles eram simpáticos e gostavam de nós.
Chegámos ao aeroporto de Lisboa e nem sinal dos avós. Primeiro grande baque, que medo! E se eles não viessem? E se se tivessem esquecido de nós? E se estivessem perdidos? Tantas perguntas afloraram a minha cabeça e medo, sempre presente o medo! Medo de estar sozinha. Medo de nunca mais ver os meus pais. Medo do desconhecido. Medo. É o sentimento de que tenho mais memória e aquele que melhor descreve o meu sentir nesse momento.
Esperámos, esperámos e esperámos um pouco mais. Esperámos aquilo que me pareceu uma eternidade mas que na verdade devem ter sido apenas uns quantos, poucos minutos. E vi o Luiz acenar e dizer - " Lá estão eles!". Olhei e vi dois estranhos. Um homem, velho. (aos nove anos todas as pessoas com mais de trinta anos são velhos), com sessenta e tal anos, pequeno, careca e gordito, com umas calças bejes, de cintura subida, cinto apertado em baixo do peito, camisa aos quadrados e  uma mulher, também ela velha, de saia e t-shirt, olharam para nós a sorrir e a acenar. Ía começar o segundo capítulo da minha vida e eu tinha apenas 9 anos.

Sem comentários:

Enviar um comentário